Fabiano Contarato
Senador da República (Rede-ES)
Defender ditadura em plena democracia é fácil; difícil, mesmo, é defender democracia vivendo numa ditadura. O governo Jair Bolsonaro escancarou a grande sombra da ditadura militar (1965-1985) que, escondida nos subterrâneos de um país que nunca acertou suas contas com o passado, corroía pelas bordas o nosso tecido democrático duramente reconquistado com a Constituição Cidadã de 1988.
Há semanas o país vive sob o temor de um distúrbio civil a ser desencadeado nas manifestações bolsonaristas neste feriado de 7 de Setembro, dia da Independência do Brasil. Os militantes dessa causa são insuflados pelos gabinetes do ódio, pela máquina de fake news e por um sentimento de psicopatia coletiva dedicado a se apropriar do ideário de “pátria” para fechar o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, e dar retaguarda civil para Bolsonaro praticar um ato isolado de ruptura democrática, ou seja, um golpe ditatorial acabando com a liberdade e a democracia no país.
Infelizmente, o grande empresariado e o meio político não reagem à altura deste crime ensaiado contra a ordem democrática. A imprensa é praticamente a única a denunciar e combater os movimentos golpistas reiterados do presidente da República. É preciso que se diga que a democracia não é, e jamais pode ser, um valor relativo e negociável. Não pode parecer ao mercado que importa mais uma economia em ordem do que uma democracia sadia. São evidentes, inclusive, os estragos econômicos da instabilidade política produzida pelos arroubos autoritários do presidente.
Em nome de uma agenda liberal extremamente agressiva contra os direitos dos trabalhadores, contra políticas sociais, contra a promoção da igualdade de oportunidades, contra o meio ambiente e contra os povos indígenas, o país afundou-se numa década perdida, em que cada ano fica pior que o outro. Desemprego recorde, pobreza crescente, fome ressurgente e violência descontrolada são só as mais cruéis das incontáveis criações do desgoverno de Bolsonaro e Paulo Guedes.
O personagem Abelardo, protagonista da icônica pela “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, tem uma fala emblemática e atualíssima: “Há um momento em que a burguesia abandona a sua velha máscara liberal. Declara-se cansada de carregar nos ombros os ideais de justiça da humanidade, as conquistas da civilização e outras besteiras. Organiza-se como classe. Policialmente.” Infelizmente, também, vemos parte das Forças Armadas complemente entregue à ideologia bolsonarista e virando sócia indissociável nos ataques sistemáticos do governo atual aos avanços que conquistamos com a redemocratização. A formação intelectual militar do Brasil ainda hoje prega que nunca houve ditadura no país. E essa escola da repressão que o arbítrio forjou nos bancos acadêmicos resulta nas polícias altamente violentas de hoje.
O saudosismo da “ordem”, do milagre econômico e do mito da nação sem corrupção foi construído em cima de assassinatos, tortura, amordaçamento da imprensa, extinção de direitos civis, Parlamento fechado, Judiciário omisso, falta de transparência e ausência de fiscalização dos agentes públicos. Ao contrário de países vizinhos que derrotaram ditaduras sangrentas e puniram torturadores que usaram o Estado para perseguir, violentar e assassinar adversários, o Brasil aprovou a Lei da Anistia, que, em nome da conciliação nacional, perdoou assassinos e nunca resolveu esse trauma.
A convulsão social que rachou o país não pode significar a falência da nossa governança civil, da alternância saudável de poder e da convivência de divergências por meio da política, que foi um dos avanços civilizatórios mais importantes da humanidade. A ditadura é o playground dos corruptos. Supor que o autoritarismo será a solução para os males da República é um erro crasso que ignora nossa história e ameaça nosso futuro. Nos bunkers da ditadura se firmaram incontáveis acertos escusos e negociatas que geraram desvios milionários.
O Brasil tem uma histórica política acidentada em seus mais de 500 anos de “descobrimento”. É a biografia de uma nação forjada a golpes, a escravidão, a racismo, a homofobia e a patrimonialismo. Com o fim da ditadura militar, em 1985, transitamos para a volta das eleições livres, renascemos com a democracia, e, desde então, o país viveu seu período mais longo de estabilidade política com eleições periódicas e Estado de Direito em pleno, ainda que imperfeito, funcionamento.
O silêncio cúmplice das elites compactua com o desmonte do nosso edifício constitucional democrático. Sabemos que elas sustentam e derrubam um presidente da República —foi assim com Fernando Collor e Dilma Rousseff. Os democratas e progressistas não podem se limitar às notas de repúdio diante das atrocidades promovidas ou estimuladas por Bolsonaro e seu séquito. Precisamos manejar todos os instrumentos do arsenal institucional democrático, incluindo a recentemente sancionada Lei de Crimes contra o Estado Democrático de Direito, para protegê-lo.
Artigo publicado na Folha de SP em 07/09/2021.