A pandemia fez o Brasil finalmente reconhecer a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), uma garantia inovadora da Constituição de 1988 que assegura o atendimento universal da população na rede pública de Saúde em níveis federal, estadual e municipal. E no combate ao coronavírus uma categoria profissional, infelizmente, pouco valorizada trava uma batalha diária, numa verdadeira trincheira de guerra, em defesa da vida e da saúde dos brasileiros e brasileiras: são os profissionais da enfermagem. Mais do que nunca, eles merecem não só reconhecimento em forma de aplausos, mas em dignidade salarial.
É por isso que apresentei, e estamos empenhados em aprovar imediatamente no Senado, o projeto de lei (PL 2564/2020) que institui o piso salarial nacional para os enfermeiros, estabelecido em R$ 7.315,00 mensais. O piso salarial nacional é o valor abaixo do qual a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, bem como as instituições de saúde privadas, não poderão fixar o vencimento ou salário inicial dos enfermeiros, com base em jornada de trabalho de 30 horas semanais. Para jornadas de trabalho superiores a 30 horas semanais, o piso salarial nacional terá a correspondência proporcional.
Propomos que o piso salarial dos demais profissionais da área seja fixado com base no do enfermeiro, na razão de: pelo menos 70% para o Técnico de Enfermagem e pelo menos 50% para o Auxiliar de Enfermagem e para a Parteira. A enfermagem e suas atividades auxiliares, categorias de profissionais abnegados, que colocam em risco a própria saúde para salvar vidas de outras pessoas, surpreendentemente continuam absolutamente desvalorizadas por todo o Brasil. O reconhecimento popular da importância dessas categorias não corresponde a remunerações dignas. É essa incoerência que este projeto pretende corrigir.
Queremos simplesmente fazer valer o que a Constituição Federal determina no inciso V, do art. 7º, que é direito dos trabalhadores o “piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho”. No entanto, só no estado do Espírito Santo, o salário médio de enfermeiros é inferior a dois salários mínimos. Técnicos, auxiliares de Enfermagem e parteiras têm remunerações ainda mais baixas. Esse injusto cenário não é muito diferente na maioria dos estados brasileiros.
Já conseguimos, em mobilização reforçada pelas entidades de classe que representam os enfermeiros, o apoio de mais de 50 dos 81 senadores ao projeto. Esta semana, nos reunimos com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em articulação para que a Casa vote logo a matéria. Trata-se de um reparo imprescindível, inclusive porque na carreira da saúde a disparidade salarial é evidente e marcante, bastando comparar a remuneração de médicos com a de enfermeiros.
Defendemos várias frentes exequíveis para o governo garantir caixa e bancar o piso salarial. Uma delas é regulamentar, como já está previsto na Constituição, o imposto sobre grandes fortunas, o que permitiria gerar receita de R$ 40 bilhões. Outra fonte de recursos permanentes seria a contribuição social sobre altas rendas: alíquota de 10%, que incidirá apenas sobre os rendimentos totais que excederem ao valor anual de R$ 720.000,00. Essa medida afetará apenas 208 mil pessoas (0,098% da população brasileira), com estimativa de arrecadação potencial de R$ 35 bilhões. Também será possível pagar o piso salarial dos enfermeiros com a arrecadação do Imposto sobre Propriedade de Veículos (IPVA), que nem chega a incidir sobre aeronaves e embarcações das classes altas e tem estimativa de R$ 1,6 bilhão apenas em São Paulo.
Conforme o relatório apresentado pela senadora Zenaide Maia, a vigência da Lei será no primeiro dia do exercício financeiro após a aprovação, isto é, no ano seguinte. É um tempo para que a União busque recursos tomando medidas permanentes e estruturantes que se nega a adotar para não tributar as altas rendas e o grande patrimônio concentrado em apenas os 0,3% mais ricos do Brasil.
A União pode compensar os deficitários, num processo semelhante ao que ocorre com a valorização do magistério, que recebe verbas de um fundo. O governo também pode revogar duas medidas que foram introduzidas em 1995, pela Lei nº 9.249: isenção do imposto sobre lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas, mesmo quando remetidos ao exterior; e permissão para dedução dos juros sobre o capital próprio, pagos aos sócios e acionistas, do lucro tributável das pessoas jurídicas.
Ainda é possível a revogação do congelamento dos gastos, introduzido pela Emenda Constitucional 95/2016. Frear a expansão da pobreza, da desigualdade e da insegurança laboral requer que o Estado de bem-estar seja reforçado, sobretudo na ampliação da cobertura dos trabalhadores inseridos em ocupações precárias. Não há como enfrentar a crise sem eliminar as amarras que impedem o Estado de ampliar seus investimentos.
Também defendemos a aprovação da Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável, necessária para reduzir as desigualdades e recapacitar financeiramente o Estado para enfrentar crises econômicas. Vale lembrar que, enquanto o mundo enfrenta o maior desafio sanitário deste século, o valor dos profissionais da saúde ficou ainda mais explícito e inquestionável. Pessoas de diversos países passaram a sair nas janelas e a aplaudir os verdadeiros heróis, aqueles que se colocam em risco diariamente para salvar vítimas da Covid-19. Estamos confiantes e trabalhando incansavelmente pela aprovação do piso salarial da enfermagem! É um dívida do Brasil com esses profissionais guerreiros e imprescindíveis!
*Fabiano Contarato (Rede-ES), senador da República
Artigo publicado no Estadão em 17/05/2021.