Embora seja comumente apontada, mesmo entre juristas, como área hermética do direito, o Direito da Concorrência integra o sistema jurídico brasileiro e não está desvencilhado das demais áreas do ordenamento.
Em verdade, a distinção que se faz entre Direito da Concorrência e as demais áreas do Direito é meramente didática, pois não pode um julgador ou aplicador da norma desconsiderar determinada norma sob argumento de integrar essa ou aquela área do conhecimento jurídico.
Assim, não raro, surgem discussões acerca das interseções entre o Direito da Concorrência e as demais áreas do conhecimento jurídico. Sabe-se que a Constituição Federal estabelece a defesa da concorrência como princípio da ordem econômica (art. 170, IV), materializada especialmente no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, previsto na Lei nº 12.529, de 2011. Combinações de preço (cartel) ou abusos unilaterais de poder econômico são condutas comumente vedadas no âmbito dessa legislação.
Contudo, outros fatores podem influenciar o cenário concorrencial, como as distorções tributárias geradas pela legislação brasileira (de responsabilidade do Estado) e o comportamento do contribuinte que se vale da posição de inadimplente para alcançar posição de vantagem competitiva.
Nesse contexto, a inadimplência costumeira de alguns agentes econômicos em relação às obrigações tributárias gera inegável vantagem competitiva, que não vem sendo combatida a contento pelo Estado. Tributaristas denominam agentes que adotam tal prática de devedores contumazes, embora não haja definição legal quanto ao termo.
Há certo consenso na jurisprudência administrativa do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), responsável por investigar condutas anticompetitivas, que desequilíbrios competitivos causados pela tributação escapam à esfera de sua competência ou jurisdição, para utilizar o termo do art. 4º da Lei nº 12.529, de 2011.
Nas palavras de João Grandino Rodas, “os órgãos do SBDC, incluindo o Cade, sempre afirmaram serem incompetentes para decidir sobre a licitude dos benefícios fiscais acima mencionados; muito embora não se tenham negado a analisar infrações à ordem econômica, porventura delas resultantes[1]”.
Temos, assim, um cenário de potencial lacuna legislativa, que revela o distanciamento entre o mandamento constitucional de defesa da concorrência e a implementação material dessa norma. Em 2008, Luís Fernando Schuartz já alertava para a impermeabilidade do Direito Antitruste aos argumentos de natureza constitucional – fato atribuído por muitos à influência norte-americana ao Direito Concorrencial brasileiro[2].
Especificamente quanto à figura do devedor contumaz, sou relator do PLS 284/2017, na Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa Consumidor do Senado Federal, que pretende regulamentar o art. 146-A da Constituição Federal.
Referido dispositivo foi incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 2003, e autoriza Lei Complementar a “estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência”. O art. 173, §4º, da Constituição Federal também determina genericamente que a lei reprima “o abuso do poder econômico que vise (…) à eliminação da concorrência (…)”.
Para cumprir seu objetivo, a proposta busca oferecer o instrumental necessário para que União, estados, municípios e Distrito Federal possam coibir práticas que possam interferir na livre concorrência. A primeira alteração que merece destaque é justamente a definição do conceito de devedor contumaz, que será, caso aprovado o PL como relatado, caracterizado na hipótese de inadimplência substancial, reiterada e injustificada de tributo.
Além disso, o PL traz medidas excepcionais de fiscalização que poderão ser aplicadas nos casos de descumprimento contumaz das obrigações tributárias.
Algumas medidas implementadas pelo projeto de lei permitem o enfrentamento do desequilíbrio concorrencial tributário por meio de medidas especiais de natureza material, como (i) a antecipação ou postergação do fato gerador, (ii) a concentração da incidência do tributo em determinada fase do ciclo econômico e (iii) adoção de alíquota específica sobre preço do produto constante em pauta de valor mínimo. A arrecadação tributária poderá ser mais eficiente e de difícil dissimulação por parte de agentes que operam na ilicitude.
Há, ainda, critérios especiais de natureza formal, como (i) a manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento objeto da medida; (ii) controle especial do recolhimento do tributo, de informações e de documentos; e (iii) adoção de regime de estimativa tributária.
O projeto tem potencial efeito em mercados altamente tributados, como o de combustíveis, cumprindo também o objetivo de melhoria de bem estar do consumidor tradicionalmente apontado na doutrina neoclássica como objetivo do Direito Antitruste.
Segundo dados de entidades ligadas ao setor de combustíveis, baseados em estimativas do Confaz e Receita Federal, o combate ao desequilíbrio fiscal pode render aos entes federados cerca de R$14 bilhões por ano em arrecadação.
De fato os meios tradicionais de controle fiscal têm se mostrado insuficientes para combater estruturas empresariais organizadas para sonegar tributos. Desse modo, entendo que a aprovação do PLS 284/2017, na forma do substitutivo que apresentei, representa um avanço no instrumental do Direito Econômico brasileiro no sentido de cumprir o comando constitucional de defesa da concorrência e proteção do consumidor.
[1] RODAS, João Grandino. O Cade e os impactos concorrenciais das práticas tributárias. Portal Consultor Jurídico. Disponível em: <https://cutt.ly/2W54ODL>. Acesso em 12 de agosto de 2021.
[2] SCHUARTZ, Luís Fernando. A desconstitucionalização do direito de defesa da concorrência. FGV Direito Rio – Textos para discussão. Rio de Janeiro: 2008. Disponível em: <https://hdl.handle.net/10438/1762>. Acesso em 17 de agosto de 2021.
FABIANO CONTARATO – Senador da República pelo Espírito Santo; advogado, professor de Direito e delegado aposentado da Polícia Civil. Foi diretor-geral do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-ES) e corregedor-geral do Estado na Secretaria de Estado de Controle e Transparência (Secont/ES)
LEVI BORGES DE OLIVEIRA VERÍSSIMO – Advogado, assessor jurídico e legislativo no Senado Federal, Mestre em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB), pós-graduado em Direito Administrativo e em Direito Imobiliário pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), graduado em Direito pela UnB
Artigo publicado no Jota em 20/09/2021.