A suspensão de liminar é instituto processual criado a pretexto de garantir a preservação do interesse público de urgência em ações coletivas. Conforme previsto em ao menos cinco leis vigentes diferentes [1], o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso detém competência para suspender a execução da liminar nas ações movidas contra o poder público ou seus agentes.
A hipótese de cabimento do pedido se dá, em regra, “a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. Trata-se, portanto, de incidente processual de legitimidade restrita e competência exclusiva dos presidentes dos tribunais, que podem suspender decisões sob o amplo e subjetivo fundamento de “manifesto interesse público”.
No Brasil, o instituto tem origem no Governo Vargas, por meio da Lei nº 191, de 1936, e foi posteriormente alterado pelo artigo 13 da Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951. A antiga Lei de Mandado de Segurança (nº 4.348, de 26 de junho de 1964), vigente durante o período militar, ampliou o instituto em seu artigo 4º. Já sob a vigência da Constituição de 1988, a Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009 (Lei do Mandado de Segurança) trouxe medida no mesmo sentido.
A doutrina aponta de maneira recorrente a ligação entre a suspensão de liminar e os regimes autoritários. Sob argumento de que há “risco de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública”, desloca-se o caminho processual para a competência do presidente do tribunal, sem qualquer justificativa jurídica razoável para tanto. O próprio Superior Tribunal de Justiça reconhece que o juízo do exercido pelo presidente do tribunal em sede de suspensão de liminar tem natureza política — e não jurídica —, de modo que não pode ser desafiado pela via do recurso especial [2]. Não sem razão, Nelson Nery Jr. classificou o instrumento como “braço da ditadura para mantença da força do Estado em detrimento dos direitos fundamentais dos cidadãos” [3].
Nesse contexto, vale lembrar que a ordem jurídica inaugurada com o retorno ao regime democrático, após a Constituição da República de 1988, concede aos jurisdicionados a garantia de um julgamento justo, imparcial e com observância do devido processo legal (CF, artigo 5º, XXXVII). O ordenamento assegura também o princípio do juiz natural, que nas palavras do ministro Luís Roberto Barroso impede o Estado de “instituir juízos ad hoc ou de criar tribunais de exceção — ao mesmo tempo em que assegura ao acusado o direito ao processo perante autoridade competente abstratamente designada na forma da lei anterior, vedados em consequência, os juízos ex post facto” [4].
Além disso, o devido processo legal exige que as partes sejam tratadas de maneira isonômica e equidistante, sendo a lide julgada por um juiz imparcial — o que é incompatível com a prevenção universal dos presidentes de tribunal para jugar o incidente. Com efeito, considerando-se que o poder público em juízo também está submetido aos princípios processuais do direito pátrio, não há motivo relevante para que os presidentes dos tribunais sejam preventos para julgar todos requerimentos de suspensão contra liminares concedidas em desfavor do poder público.
Outra característica autoritária do instituto da suspensão de liminar é a dispensa de contraditório. Embora a oitiva do Ministério Público seja possível em alguns casos, a necessidade de manifestação não é obrigatória. O referido modelo viola não apenas o Código de Processo Civil, mas também o disposto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, que garante aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Há, ainda, potencial colisão com o princípio da unicidade recursal ou unirrecorribilidade, uma vez que a mesma decisão interlocutória pode ser desafiada tanto pela via da suspensão de liminar quanto pelo agravo de instrumento. Embora haja um certo consenso doutrinário de que o instituto da suspensão de liminar não tem natureza jurídica de recurso, é inegável que se trata de meio de impugnação de decisão judicial e a urgência em muitos casos é inerente ao objeto do litígio, de que modo que a decisão no incidente acaba por esgotar a pretensão do autor.
Destaque-se que todos os membros do tribunal possuem jurisdição para, havendo justo motivo, reverter eventual decisão liminar que contrarie o interesse público ou represente risco à ordem pública. Além disso, o interesse coletivo não se confunde com o interesse do Governo, de modo que a legitimidade exclusiva da Fazenda não se justifica.
Ilustrativamente, em matéria ambiental, marcadas pelo princípio da prevenção e da necessidade de atuação jurisdicional em caráter de urgência, a suspensão de liminar carece ainda mais de legitimidade. Nesse âmbito, eventual dano ao meio ambiente tem o condão de gerar prejuízos irreparáveis à coletividade, uma vez que não é possível recuperar fauna e flora e garantir o equilíbrio ecológico após o fato danoso. Assim, a suspensão de liminar tem sido verdadeiro obstáculo à efetividade do que dispõe o artigo 225 da Constituição Federal.
A concessão indistinta de suspensões de liminar por presidentes de tribunais tem, inclusive, violado o princípio da colegialidade que rege a dinâmica processual no país. Recentemente, no âmbito da SL 1298 MC/DF, o presidente do Supremo Tribunal Federal suspendeu monocraticamente decisão colegiada da Seção Especializada em Dissídios Coletivos (SDC) do Tribunal Superior do Trabalho, que garantiu o direito de greve a entidades sindicais do setor petrolífero.
Em outro caso recente, o presidente do Superior Tribunal Justiça autorizou, em suspensão de liminar, a nomeação do presidente da Fundação Palmares, que havia sido indeferida por instâncias inferiores. Certamente, não havia naquele caso risco à ordem pública que justificasse a intervenção por essa via. Outros exemplos no mesmo sentido são inúmeros. A suspensão de liminar acaba sendo expediente para afastar a análise jurisdicional imparcial e político em razão de ser personalizado unicamente no presidente do tribunal.
Vale lembrar que o Código Civil já prevê procedimento adequado para provimentos liminares em desfavor do poder público: tais hipóteses podem ser desafiadas pela via do agravo, a ser distribuído livremente a um desembargador ou ministro, na forma dos artigos 930 e 1.015, I, da Lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).
Além de todos os argumentos expostos, o instituto tem o condão de onerar a imensa carga de trabalho dos presidentes de tribunais, que já possuem a competência constitucional de determinar o pagamento de precatórios e de apreciar, a depender do tribunal, o juízo de admissibilidade de recursos para tribunais superiores.
Nesse contexto, considera-se extremamente oportuno discutir a pertinência e compatibilidade do instituto com o ordenamento jurídico vigente, em especial com o sistema recursal previsto no Código de Processo Civil e as garantias a julgamento justo e imparcial asseguradas pela Constituição Federal.
Por esses motivos, tramita no Senado Federal o projeto de lei nº 1670, de 2020, de autoria do senador Fabiano Contarato, que visa a extinguir do ordenamento jurídico brasileiro o instituto da suspensão. Como fiz por meio da exposição de motivos apresentada, o objetivo deste texto é ecoar à comunidade jurídica, de maneira pormenorizada, as razões para que o instituto seja extinto.
[1] Vide o art. 5º, §4º, da Lei nº 4.717, de 29 de junho de 1965; o art. 12, §1º, da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985; o art. 25 da Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990; o art. 4º da Lei nº 8.437, de 30 de junho de 1992; o art. 16 da Lei nº 9.507, de 12 de novembro de 1997 e o art. 15 da Lei nº 12.019, de 7 de agosto de 2009. [2] STJ. Segunda Turma. AgRg na MC 22.070/DF, Rel. Min. Herman Benjamin. DJe 07/03/2014. [3] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 9. Ed. São Paulo: Ed. RT, 2009, pp. 118-110. [4] BARROSO, Luis Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil Anotada. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 35, subtítulo 60.Levi Borges de Oliveira Veríssimo é advogado, assessor jurídico e legislativo no Senado Federal, mestrando em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB), pós-graduado em Direito Administrativo e em Direito Imobiliário pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e membro do grupo de pesquisa Constituição, Empresa e Mercado da Universidade de Brasília.
Fabiano Contarato é senador da República pelo Espírito Santo; advogado, professor de Direito e delegado aposentado da Polícia Civil. Foi diretor-geral do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-ES) e corregedor-geral do Estado na Secretaria de Estado de Controle e Transparência (Secont/ES).
Artigo publicado pelo Conjur em 26/04/2020.