Um golpe contra as defensorias públicas e o acesso dos pobres à Justiça

Por outubro 13, 2021outubro 22nd, 2021Artigos

Fabiano Contarato
Senador da República (Rede-ES)

Especial para o UOLO grande jurista e político Rui Barbosa deixou este alerta atemporal sobre as desigualdades do Brasil: “A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”. Dias após o aniversário de 33 anos da Constituição Federal, é forçoso reconhecer que poucas instituições incorporam o espírito da Carta Cidadã como as Defensorias Públicas. Apesar disto, notam-se crescentes ameaças ao funcionamento destes órgãos e à atuação de defensoras e defensores públicos por todo o Brasil.

São ameaças não só ao trabalho desempenhado por agentes e órgãos públicos, mas, principalmente, aos milhões de brasileiros e brasileiras que dependem das Defensorias Públicas para gozar dos direitos fundamentais que a Constituição pretende lhes assegurar.

Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) questionou, perante o Supremo Tribunal Federal, a constitucionalidade de trechos da Lei Complementar nº 80, de 1994, os quais estabelecem o chamado “poder de requisição” da Defensoria Pública. Assim fazendo, pretendeu retirar a prerrogativa das Defensorias Públicas de requisitar documentos de outras autoridades e órgãos públicos. São exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições.

Questionamentos semelhantes foram postos em face de diversas leis estaduais que reproduzem estas previsões. Trata-se de prerrogativa básica e necessária ao exercício das atribuições constitucionais de “orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicialmente, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita” (artigo 134 da Constituição Federal). É utilizada de modo cotidiano para obter informações necessárias à propositura de ações em defesa e benefício de assistidos(as).

Essa prerrogativa das defensorias serve, também, às causas sociais e coletivas em defesa do meio ambiente, da ordem econômica, de grupos raciais étnicos e religiosos e de todas as demais hipóteses autorizadoras da ação civil pública, para a qual a Defensoria Pública é legitimada ativa (Lei nº 7.247, de 1985).

Ora, dentre as inúmeras atribuições constitucionais do Ministério Público Federal, a de defesa dos interesses da sociedade brasileira é princípio basilar que não se coaduna com a tentativa de golpear e enfraquecer as defensorias públicas. Essas instituições, tanto vinculadas aos governos estaduais quanto à União, precisam de apoio político maciço e de investimentos públicos que superem suas antigas dificuldades estruturais, sua insuficiência de quadros pessoais e seus limitados recursos operacionais.

A Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2021 revela que 86 milhões de brasileiros não têm acesso aos serviços de assistência jurídica oferecidos pela Defensoria Pública da União, dos quais 78 milhões são vulneráveis economicamente, com renda familiar de até três salários mínimos. Segundo o jornal Correio Braziliense, o estudo aponta 40,7% da população impedidos de recorrer aos próprios direitos nas defensorias públicas da União para reivindicar suas demandas e necessidades.

É preciso que o Congresso aja, sobretudo num contexto nacional em que reformas legislativas cruéis têm minado conquistas de cidadania do povo brasileiro, como as reformas trabalhista e previdenciária e a agenda ultraliberal que tem ampliado a pobreza, a fome, a precarização das relações de trabalho e a desigualdade. Com tamanha fragilidade social, inacessibilidade de direitos e violações rotineiras de direitos humanos em decorrência da pandemia da Covid-19, nunca a Defensoria Pública se fez tão necessária. Paradoxalmente, nunca foi tão negligenciada. É existencial a ameaça que as ações apresentadas pela PGR representam para o seu trabalho.

Nosso mandato está de portas abertas nas frentes de atuação legislativa em defesa das defensorias e do direito dos mais pobres a poder recorrer à Justiça muitas vezes em situações de extrema gravidade e desespero. Fiz emenda e recorri à Presidência do Senado para derrubar um “jabuti”, emenda inserida em proposta em trâmite no Congresso, que pretendia acabar com gratuidade do acesso à justiça.

Também apresentei requerimento, recentemente, no Senado, para inserção em ata de voto de louvor à Defensoria Pública, composta pela Defensoria Pública da União e pelas Defensorias Públicas Estaduais e do Distrito Federal. Convido todos meus colegas senadores e senadoras para demonstrar, por meio de voto de louvor e outras iniciativas, o apoio inequívoco do Senado às defensoras e aos defensores públicos de todo o Brasil.

Há um outro problema: os impactos da medida proposta pela PGR alcançarão também o próprio funcionamento do Poder Judiciário, aumentando o volume de processos que serão necessários simplesmente para instruir as ações principais. A morosidade gerada prejudicará, como de costume, principalmente as partes mais vulneráveis, para quem o reconhecimento dos direitos é mais urgente.

O direito de acesso à Justiça, confirmado no artigo 5º da Constituição, depende do acesso tempestivo e efetivo à justiça, para o qual a Defensoria e seu poder de requisição são absolutamente essenciais. Nenhum direito a menos!

Artigo publicado no UOL em 13/10/2021.