PEC das Drogas é combate à violência ou criminalização da pobreza?

Por abril 3, 2024Artigos

Por  Fabiano Contarato *

É preciso ser honesto: a Proposta de Emenda à Constituição 45/2023, conhecida como PEC das Drogas, não resolve os problemas das drogas, da segurança pública ou do avanço das organizações criminosas no Brasil. Não inova e não estabelece critério para diferenciar usuários de traficantes. A PEC nos dá uma certeza: pobres e pretos, ainda que usuários de drogas, continuarão sendo jogados indiscriminadamente ao sistema penitenciário e tratados como traficantes.

Sem definições objetivas ou subjetivas estabelecidas expressamente na lei, caberá ao delegado de polícia definir quem será enquadrado por tráfico e quem será usuário, independentemente da quantidade de entorpecente encontrada com cada um. O destino de dois jovens de classes e cores distintas será bem diferente. Sabemos disso. Caso ainda restem dúvidas, relembro: quase 70% da população carcerária no Brasil é composta de negros, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O ministro Alexandre de Moraes, ao votar sobre a descriminalização do porte de drogas, destacou dados expressivos sobre características dos indiciamentos no Brasil: pessoas brancas precisam portar 80% a mais de entorpecentes do que uma pessoa preta para ser indiciadas por tráfico de drogas. É razoável que nós, legisladores, incentivemos a perpetuação da criminalização da pobreza e da cor da pele?

Em 2006, o Congresso Nacional aprovou a Lei 11.343, conhecida como Lei de Drogas, e despenalizou o usuário de drogas, conforme o artigo 28 da legislação. Ao ser flagrado transportando ou portando entorpecentes, o usuário não é autuado em flagrante, não é registrado como criminoso e não paga fiança. O legislador optou por não aplicar a pena restritiva de liberdade, mas medidas para alertar sobre os riscos e evitar o vício, aplicando tratamento diferenciado em relação ao traficante. Com a PEC, essa mesma pessoa, ainda que usuária, poderá ser indiciada por tráfico.

Por óbvio, não se trata de defender traficante. Pelo contrário: defendo ainda mais rigor na punição nesse caso. Hoje, temos uma pena para o tráfico que varia de cinco a 15 anos de prisão. Por que não endurecer essa punição? Vendemos para a população que simplesmente aprovar a PEC das Drogas resolverá o problema. E isso não é verdade.

O que o Senado Federal deveria fazer para dar um passo à frente é estabelecer, com critérios objetivos e subjetivos, quais condutas serão tipificadas para tráfico e quais serão adequadas no porte de substância para uso próprio, sem deixar dúvida ou margem para a criminalização exacerbada de usuário de drogas, especialmente os que vivem em bolsões de pobreza e são, em sua maioria, pretos e pardos.

Termino com um exemplo muito simbólico. Quando eu era delegado da Polícia Civil do Espírito Santo, um pai levou o filho amarrado dentro do porta-malas do carro, pedindo que eu o prendesse, porque o menino era usuário de drogas. Esse pai, em total desespero e abandono do Estado, queria mesmo o filho preso ou queria salvá-lo do vício?

Esse pai queria apoio, caminho e tratamento para o filho. Queria o fim do sofrimento da família. É disso que precisamos: cuidar de quem precisa, numa atuação conjunta entre os Poderes e a sociedade, e punir de forma dura o traficante e toda a cadeia de ilícitos envolvidos no crime, como lavagem de dinheiro, organizações criminosas e assassinatos. A PEC não soluciona o problema concreto dos mais vulneráveis, tanto do ponto de vista da saúde quanto da segurança pública. Esses mecanismos, infelizmente, ainda não estão em discussão no Legislativo brasileiro.

*Fabiano Contarato é senador pelo Espírito Santo, professor de Direito e delegado aposentado da Polícia Civil

 

Artigo publicado em O GLOBO em 03/04/2024.