Réplica: Constitucionalidades e custeio do piso nacional da enfermagem

Por fevereiro 14, 2023Artigos

No último dia 3, o diretor jurídico da Confederação Nacional de Saúde publicou artigo neste espaço, classificando o piso nacional da enfermagem como inconstitucional e carecedor de fonte de custeio. Em sua visão, a Emenda Constitucional 127/22 (EC 127/22) “não desatou o nó do custeio ao direcionar para tal fim recursos do superávit financeiro de fundos públicos e do Fundo Social do Pré-Sal”.

Além disso, o autor aponta a suposta ausência de indicação de fontes de recursos ou compensações para estabelecimentos de saúde privada com fins lucrativos como óbice para implementação do piso, mesmo diante da solução proposta pela EC 127/22, que alcança apenas o SUS e os estabelecimentos que direcionam, no mínimo, 60% de sua atividade ao SUS.

Como autor da lei que concede a enfermeiros, técnicos, auxiliares e parteiras a dignidade salarial já determinada pela Constituição Federal, faço uso do mesmo espaço para apresentar à comunidade jurídica a nítida constitucionalidade da norma. Assim, veremos que a compatibilidade entre o piso salarial da enfermagem e o texto constitucional se dá tanto do ponto de vista material – que não foi objeto de análise no aludido artigo do representante da CNS – quanto do ponto de vista de custeio – cuja resposta já foi indicada pelo próprio autor em seu texto.

Em relação ao impacto orçamentário e financeiro, os superávits dos fundos públicos apontados pela EC 127/22 já somaram R$ 20 bilhões em 2022, suficientes para cobrir o impacto estimado em R$ 16 bilhões dos aumentos oriundos da aplicação do piso nacional da enfermagem. Já o Fundo Social, instituído pela Lei 10.352/2010, recebeu mais de R$ 21 bilhões em 2021, provenientes de recursos da exploração de petróleo. Não há, portanto, obstáculo sob a ótica orçamentária que impeça a imediata aplicação da norma.

Ainda no aspecto formal, vale lembrar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4167, que declarou a constitucionalidade da norma federal que fixou o piso salarial dos professores da educação básica.

Mais do que isso, sobram fundamentos materiais que tornam a aplicação do piso impositiva – tanto para servidores públicos quanto para trabalhadores do setor privado. Dentre os diversos motivos, é evidente a necessidade de materialização do reconhecimento dos profissionais, que, durante o longo período da pandemia da Covid-19, foram incansáveis na defesa da vida e da saúde dos brasileiros.

Não sem razão, a Constituição Federal tem como linha condutora a garantia da dignidade humana como princípio fundamental, sendo certo que todo brasileiro (não apenas enfermeiros e profissionais atendidos pela nova lei do piso) tem direito a um salário “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”, nos exatos termos do art. 7, IV, da Constituição.

Também inconcebível o argumento de que a norma invadiria a livre iniciativa e o planejamento orçamentário das empresas privadas ou que a emenda constitucional que indicou recursos seria insuficiente para esse fim, uma vez que a proposta foi objeto de ampla discussão – em tempo suficiente para que as empresas não alcançadas pela emenda se adequassem às exigências legais – e que a Constituição Federal determina também que as empresas devem cumprir sua função social (art. 170, III). Necessário considerar, ainda, que as ações e serviços de saúde são de relevância pública (art. 197), de modo que as normas gerais de concorrência e mercado devem ser observadas no contexto dessa relevância social do serviço prestado.

Por essas razões, a aplicação concreta e imediata representa aplicação do direito material já consagrado pela Constituição Federal e também o reconhecimento justo e merecido do esforço heroico dessas classes profissionais ao longo do período mais crítico da pandemia de Covid-19. A compatibilidade com o texto constitucional se dá tanto no aspecto material como formal, devendo os agentes econômicos públicos e privados se curvarem ao legítimo processo legislativo observado pelo Congresso Nacional.

FABIANO CONTARATO – Senador da República (PT-ES)

 

Artigo publicado no Jota em 13/02/2023.